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sábado, 6 de fevereiro de 2010

“Não sou massa de manobra”

 

(Maristela Bairros – Jornalista) Ventilador voltado para as canelas, toalha úmida sobre o acento da cadeira giratória, janela escancarada, vento correndo fora e teimando em não entrar no escritório em que duas máquinas ligadas ampliam a fornalha. E os sabiás cantam, os cretinos, no minibosque ao lado do prédio. A batalha hora-a-hora de percorrer sites em inglês, espanhol, italiano, francês e na língua-mãe tão enxovalhada exige acréscimo de energia porque, bem, porque está calor. E duvido que este fator não altere o produto.

Fico aqui, pensando, o quanto custa para o presidente Lula e seu staff, andar por este país subindo e descendo daquele avião imenso com supearrefrigerado, tendo de enfrentar mudanças bruscas de temperatura e de pressão. Pior: sem poder fumar, diante dos fotógrafos em especial, seus cigarrinhos. Tadinho dele.

Imagino este vencedor de adversidades, este homem da década quiçá do século, cometendo o sublime sacrifício de comer demais a ponto de ter engordado 14 quilos, toda aquela comida palaciana, com chef e tudo. Afinal, ele passou fome e quem passou fome tem uma fome insaciável.

Também divago sobre o que li, numa das revistas semanais, sobre as causas do mal-estar presidencial: ele voltou rápido demais das férias! Deveria ter retomado o ritmo de trabalho aos poucos, como qualquer mortal. Opa! Os mortais, como eu, voltaram, voltam e voltarão de férias mergulhando de cabeça no que têm a fazer, sem tempo para ajustar o relógio biológico ao novo ritmo. E os mortais, como eu, na grande maioria não têm praia particular, tampouco jatinho pra ir e vir dos dias de descanso aos de agenda cheia. E eu, na verdade, tem 7 anos que não sei o que é férias. Tá bem. Eu sou só mortal. E fiz a besteira de estudar, fazer faculdade pública, trabalhar desde o segundo ano de jornalismo, em vez de ser a eterna filha do sapateiro que não teve chance na vida.

Pois tive. Comi pão com banana porque manteiga era luxo, usei, por cinco anos, o mesmo sapato vulcabrás, horroroso, que meu pai consertava, pintava, lustrava e deixava como novo, sem falar no tênis branco, que era de pano, na época, e minha mãe retocava com giz, pra ocultar as falhas. Fiz primário, ginásio, clássico e universidade pública. Tirando a faculdade, em que o fato de trabalhar em até três lugares fez com que relaxasse nos estudos, sempre fui aprovada por média, sem ter de jamais fazer um único exame final. E ainda comi um ano do clássico para antecipar meu vestibular, estudando para o então Artigo 99 que me deu o certificado de conclusão (e tive a nota mais alta em francês, naquele distante ano) e passando direto no funil para meu sonhado curso de Jornalismo. Então, sou ou não sou o máximo?

Viajo nestas memórias desimportantes para quem me lê porque hoje tudo me dói mais que naquela época de privação e de até discriminação por ser eu uma moradora de bairro operário e filha de pais analfabetos funcionais. Vejo, agora, Brasília, que aprendi a colocar num pedestal quando menina, ser mergulhada no esgoto sem que nada aconteça para punir ou ao menos afastar os podres agentes de propinas e falcatruas. Assisto, de carne e osso, ao desmonte da saúde pública a cada três meses em que levo meu pai ao hospital para a revisão de seu câncer e, a cada susto que leva, a uma corrida à emergência do SUS, quando cuido até como respiro para evitar que um funcionário mal-pago e sem saco deixe meu velho esperando até além do limiar.

Leio, com nó na garganta, que continuamos produzindo e alimentando gente que não vai saber nem ler nem escrever como se ainda vivêssemos a época em que meus pais, hoje com 82 anos cada um, tiveram de deixar o banco da escola para, com 7 anos, trabalhar em alguma fábrica. Me enojo ao ver esta encenação barata de hipocrisia em que um presidente vindo da miséria se apega ao poder a ponto de querer alimentar um clone impossível, esta outra figura patética de Dilma Roussef, a cumpanhêra que pegou em armas e hoje faz ovos mexidos num programa varzeano de televisão, tudo para fazer de conta que é do povo, que merece seus votos. Do povo, sim. Mas as plásticas e o tratamento para o câncer não foram feitos pelo SUS, no que foi imitada pelo “chefe” que, mal inaugurou um hospital para a pobreria, correu para cuidar do dodói num belo hospital privado.

Acho que é o calor, sim, que está me deixando assim tão amarga, tão confusa, tão ingrata com a vida. Eu sei: eu venci. Poderia estar no subúrbio, com aquela bandeirinha vermelha com a estrela amarela na mão, esperando a hora de correr às ruas para mostrar lealdade ao Papa Doc Lula em troca de algum calçamento ou bica de água. Só que eu não quis isso para mim. Meus pais, pobres, sem instrução, não quiseram. A eles, então, agradeço por não ser igual nem ao ídolo tanto da massa ignara quanto do batalhão de oportunistas, tampouco a estas mesmas patéticas massas de manobra.

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Maristela Bairros é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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