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sexta-feira, 11 de junho de 2010

Assédio na igreja

Em uma pequena cidade do interior de Santa Catarina, um frei organizava um coral de crianças e adolescentes em sua paróquia. As meninas mais bonitas, segundo as participantes, tinham mais chance de se tornar a cantora principal. Por meio desses encontros, o padre se aproximou de jovens que o denunciaram por abuso sexual. Por que esse caso — e a dificuldade das vítimas em falar sobre ele — desmente a ideia propagada pelo Vaticano de que o assédio na igreja é homossexual.

 
Imagem ilustrativa
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De um lado da linha telefônica, um homem pergunta se ela veste calcinha branca. Do outro lado, uma menina de 13 anos sussurra que não — ela está no quarto e seus pais, que não sabem do envolvimento com o homem mais velho, assistem à televisão na sala. A calcinha que ela usa é verde. Durante a conversa, o homem questiona se ela o ama. Na afirmativa, é possível perceber a entonação infantil da voz da menina. Ele retruca dizendo que não acredita na resposta. “Quem ama faz algo a mais”, diz o homem. Depois, diz que “não vai aguentar” e vai agarrá-la. A conversa, que termina com uma declaração de amor recíproca, foi gravada por um grampo policial. Aconteceu entre o padre catarinense Ângelo Chiarelli, 64 anos, e uma adolescente que frequentava sua paróquia poucos dias antes de ele ser preso por atentado violento ao pudor. Foi flagrado com a jovem em seu quarto e, em um vídeo feito pela polícia e veiculado pela imprensa local, ela diz que foi beijada e que ele “passou a mão” no seu seio.
  
Reprodução
Frei Ângelo, como o padre é conhecido, é um senhor de cabelos brancos, baixinho, com a pele do rosto enrugada e manchada pela idade. A fala mansa ajuda a reforçar o estereótipo do bom velhinho. Morava e trabalhava na paróquia do Espírito Santo, no bairro de Canoas, em Rio do Sul, uma cidade de 50 mil habitantes, em Santa Catarina. Chegou à cidade em 2007 e até ser preso, em junho do ano passado, dirigiu um coral de crianças e adolescentes na igreja, num projeto chamado “Infância e Juventude Missionária”. Depois da prisão, meninas que participavam do coral disseram ter sido assediadas por ele, segundo a polícia de Rio do Sul. “Ele passava a mão de um jeito esquisito em mim. A primeira vez, apalpou meu bumbum, quando pediu licença para passar em uma porta onde eu me apoiava no parapeito. Achei estranho, mas não dei importância, afinal, era um padre. Depois, esbarrou algumas vezes com a palma da mão no meu peito, só que de um jeito demorado. Custei a acreditar que tinha outras intenções. Tive certeza de que tinha alguma coisa errada e me distanciei no dia em que me deu carona. Ele estava dirigindo e eu sentada no banco do passageiro. Enquanto conversava, começou a passar a mão na parte de dentro da minha coxa. Eu tinha 13 anos”, diz Fernanda*, 14, ex-corista.
“Custei a acreditar que o padre tinha outra intenção”
— Fernanda*, ex-corista
Na busca que a polícia fez no computador do padre, encontrou centenas de fotos de meninas de biquíni em posições sensuais, tiradas em viagens que ele organizava para parques aquáticos e praias, com as frequentadoras do coral. As fotos enfatizam seios, bumbuns e coxas. Uma das mais chocantes é o retrato de uma menina de mais ou menos 11 anos com o biquíni levantado, mostrando os pequenos seios em fase de crescimento. “As meninas não têm discernimento, eram incapazes de compreender o que estava acontecendo. Ele tirava proveito dessa ingenuidade. Em tese, o padre está acima de qualquer suspeita”, diz o promotor de Justiça André Otávio Mello, que trabalhou no caso. “Ele as manipulava dizendo que as meninas iam se tornar ‘a cantora principal’ do coral, que em breve lançariam um disco.” Segundo Fernanda, só as mais bonitas ganhavam o posto de preferida do frei.
  Reprodução
No início do ano, o padre foi condenado a oito anos e nove meses de prisão por atentado violento ao pudor. O advogado dele, Jeremias Felsky, recorreu da decisão, alegando que o cliente é inocente. “Nenhum dos atos que ele cometeu é criminoso.” Procurado por Marie Claire na cadeia de Rio do Sul, o padre disse que foi aconselhado pelo advogado a não dar entrevistas. Até o momento do fechamento desta edição, o recurso da defesa ainda não havia sido julgado e o frei se encontrava em uma cela solitária do presídio.

Celibato e homossexualidade

A sentença da Justiça catarinense foi dada durante uma feroz crise de imagem da igreja católica em nível mundial. Nos últimos meses, surgiram inúmeras denúncias de abuso sexual cometidos por padres no mundo todo. Um relatório irlandês, por exemplo, notificou 15 mil casos de abuso nos últimos 70 anos. Surgiram denúncias de pedofilia na Alemanha e em outros países da Europa. A mais grave delas esbarrou no próprio papa. Segundo uma reportagem do jornal americano The New York Times, quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão responsável por determinar a punição dos sacerdotes, Joseph Ratzinger teria acobertado um padre dos Estados Unidos que pode ter abusado de 200 crianças entre as décadas de 50 e 70.

Em meio aos ataques, o Vaticano tentou atribuir a motivação desses crimes à orientação sexual dos religiosos. Durante uma entrevista coletiva em Santiago, no Chile, em abril, o cardeal italiano Tarcisio Bertone, segundo na hierarquia do Vaticano, afirmou que é a homossexualidade a causa dos abusos. “Muitos psicólogos e psiquiatras demonstraram que não há relação entre celibato e pedofilia, mas outros mostram que há entre homossexualidade e pedofilia.”

Como prova o caso de Rio do Sul, o argumento de Bertone é falho. “Muita coisa melhoraria se começássemos a discutir o celibato”, disse à Marie Claire o teólogo alemão Hans Küng, contemporâneo de Ratzinger e o mais contundente crítico do voto de castidade. O argumento por trás desse raciocínio é o de que a proibição do sexo ajudaria a atrair pedófilos para a igreja, interessados na possibilidade de suprimir a sexualidade malresolvida. “Sabemos que a sexualidade, como mostraram Freud [Sigmund Freud, criador da psicanálise], Foucault e Ricoeur [Michel Foucault e Paul Ricoeur, filósofos franceses], possui uma natureza vulcânica. Não basta a razão intelectual para integrá-la no todo da vida humana”, disse o teólogo Leonardo Boff em entrevista a O Estado de S. Paulo. “Ora, a pedofilia é um desvio de comportamento, portanto, ligado à sexualidade mal-integrada. Isso é o que o Vaticano não quer, mas será obrigado a ver.”

Editora Globo
O histórico de abusos

As primeiras denúncias contra o frei Ângelo Chiarelli surgiram ainda na década de 70, em Cruzeiro do Oeste, no interior do Paraná. “Eu tinha 8 anos quando ele abusou de mim pela primeira vez”, diz Marcela*, hoje com 39. “Ele era íntimo da família. Meu pai fazia parte do grupo da igreja e até saía para pescar com o padre, que frequentava minha casa. Um dia, ele veio fazer cócegas na minha barriga no sofá da sala. Eu ainda não tinha seios, mas ele ‘alisou’ meu peito de um jeito horroroso, que eu nunca mais esqueci.” Ela diz que, naquela época, o padre também comandava um coral de crianças na igreja, do qual ela e as irmãs participavam. “Como sabia da rotina da família, ele nos visitava quando nossos pais não estavam. Fazia cócegas em lugares inapropriados e chegou a passar a mão na minha vagina.”
“Paralisada, olhei para baixo. ate hoje lembro das sandalias franciscanas dele”
— Marcela*, ex-corista
Marcela conta que o frei escrevia cartas para as meninas do grupo. “Dizia a mesma coisa para todas: que nós éramos a amiga número-um dele, a pessoa que ele mais gostava e confiava. ‘O que temos é muito especial, importante e ninguém precisa saber.’ Sempre nos chamava para conversar sobre algum assunto do coral no quarto dele, que era recheado de doces e balas. Uma vez, pela porta entreaberta, vi ele passando as mãos nos seios de uma amiga de 10 anos. Ela chorava. Eu entrei no quarto e ela me fez prometer que não contaria o que vi”, diz Marcela. “Eu morria de medo, mas nem sempre conseguia evitá-lo. Como não tinha coragem de contar o que acontecia, ele continuava frequentando nossa casa e nós, o coral. Não gostava de ficar sozinha com ele. Estávamos em um ensaio na última vez que tocou em mim. Ele pediu para eu ver alguma coisa no quarto e foi junto. Depois que entrei, trancou a porta. Me abraçou e foi a primeira vez que senti um pipi encostando em mim. Paralisada, olhei para baixo — até hoje lembro das sandálias franciscanas que ele calçava. Durou segundos. Quando me largou e abriu a porta, saí correndo para o coral. Eu sentia muita culpa. Perguntava por que comigo.”

Depois desse episódio, Marcela diz que contou para algumas amigas o que aconteceu. “Várias disseram que ele tinha feito o mesmo com elas. Outras ficaram decepcionadas porque tinham se apaixonado. Uma chegou a dizer que queria fugir com ele. Reunidas, as meninas decidiram contar para as mães e se reunir com os dirigentes do projeto. “As beatas disseram que estávamos nos insinuando para o padre. Falavam que eu era a ovelha negra. Minha mãe, após essa conversa, veio me dizer que eu devia estar confundindo o carinho do padre com alguma coisa a mais. Morávamos em uma cidade muito pequena, eram outros tempos. Carreguei essa história comigo a vida toda. Durante um tempo, fiquei com medo dos homens e, quando minha filha nasceu, passei a desconfiar de qualquer um que se aproximasse dela. Não conseguia deixá-la sozinha nem com o meu marido. Adulta, resolvi contar a história para meu pai, um homem simples, do campo. Ele não deu importância. Queria saber se o frei tinha tido um caso com a minha mãe. Na cabeça machista dele, ser traído era mais vergonhoso do que ter uma filha molestada.”

O coral de Rio do Sul

No século XXI, o padre trocou as cartas por mensagens de texto no celular como forma de manter contato com as meninas. O irmão de Fernanda, uma das meninas de Rio do Sul, nove anos mais velho, estranhou o conteúdo das mensagens enviadas pelo padre para a irmã. “Ele era muito agarrado nela. Quando soube que ele tinha um perfil no Orkut e ficava conversando com ela pelo Messenger, desconfiei. Sabia que eram características comuns em casos de pedofilia. Resolvi ler as mensagens no celular dela e fiquei chocado com o que encontrei”, diz. Em algumas mensagens, dizia que amava a menina, que sentia saudade. Em outras, que precisava de um “remedinho” — a própria Fernanda. Havia também uma série de palavras em código: “imet” (segundo a polícia, amor) e “cetície”, coração. Para outras meninas, escreveu que gostaria de vê-las “s.c.” ou “c.c.” — sem calcinha ou com calcinha.

Fernanda diz que, no início da convivência com o frei, não estranhava o conteúdo das mensagens. “Eu achava que ele era mesmo meu melhor amigo. Se tinha algum problema em casa ou brigava com meus pais, ia desabafar com ele. O padre dava conselhos, dizia que tínhamos de estar do lado dos nossos pais. Era amigo da família e nunca imaginei que pudesse fazer algo ruim para a gente. Quando as carícias começaram, eu demorei para acreditar que ele estava fazendo aquilo. Sentia um pouco de medo, de nojo. É claro que nunca me senti atraída, mas no início, gostava de conversar com ele”, afirma. “Ele usava a linguagem das adolescentes para se aproximar”, afirma o promotor André Otávio Mello.

Quando o irmão de Fernanda encontrou as mensagens no celular, conversou com seu pai, que proibiu o contato da filha com o frei. “Ele foi a minha casa perguntar por que eu não frequentava mais o coral. Disse que eu tinha de voltar”, diz Fernanda. “Respondi que estava muito ocupada com a escola, que, quando estivesse mais livre, voltaria.” O pai e o irmão reuniram as mensagens e levaram uma denúncia à polícia da cidade. Outras meninas que participavam do coral não quiseram dar entrevistas. Visivelmente constrangidas, limitaram-se a dizer que não desejavam lembrar de coisas ruins. “Depois que o escândalo estourou, me chamavam de amante do frei na escola”, diz uma delas. “Boa parte da cidade acha que nós é que somos culpadas. Até mães de meninas que conviviam com ele defenderam o frei.”
“O padre sabia usar a linguagem das adolescentes para se aproximar delas”
— André Otávio Mello, promotor
Silêncio e preconceito

Antes de Rio do Sul, o frei Ângelo morou na cidade de São Lourenço do Oeste, também no interior de Santa Catarina. “O padre convidava as meninas a se despir no quarto dele. Tentava abraçá-las e beijá-las”, diz o promotor de Justiça Eraldo Antunes, que entrevistou duas meninas que se diziam vítimas do frei. “Ele era muito admirado. Depois que as denúncias foram parar no Conselho Tutelar, foi transferido.” Procurada por Marie Claire, a Confederação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) não comentou o caso e pediu que entrássemos em contato com a diocese a que ele pertence. O bispo dom Augustinho Petry, de Rio do Sul, não quis dar entrevistas. “Foi difícil trabalhar com a igreja católica, que fez o possível para omitir informações necessárias à ação da polícia”, diz a delegada Karla Fernanda Miguel, que investigou o caso. Durante uma assembleia no início de maio, a CNBB anunciou que vai redigir uma cartilha para orientar bispos a afastar rapidamente padres suspeitos de abuso. Também frisou que os dirigentes devem fornecer todas as informações necessárias ao trabalho da polícia e ainda ressaltou a importância de criar novas diretrizes para formar e selecionar novos candidatos a padres.
A pesquisadora Regina Soares Jurkevicz, coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir e autora de um livro sobre o abuso de mulheres por padres no Brasil, aponta a dificuldade em reconhecer esse tipo de assédio. “Há uma subnotificação dos casos de mulheres abusadas por padres porque se presume que elas possam tê-los seduzido”, diz Regina. “Quando a denúncia é feita, é comum que a igreja tente desqualificar a acusação e a acusadora, além de não investigar e não punir o responsável — apenas o transfere de cidade. Denunciar o abuso pode ser tão sofrido quanto ser vítima dele.” Talvez por isso, o discurso de que a pedofilia está mais ligada à homossexualidade do que ao celibato ainda encontre adeptos. Para Fernanda, Marcela e outras dezenas de meninas que cruzaram a vida do frei, não há dúvidas de que os padres podem cometer abusos heterossexuais.

Marie Claire/Notícias Cristãs

FONTE: NOTICIAS CRISTÃS

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